quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Uma voz de liberdade


É bem verdade que alguns livros nos incomodam. Não no sentido pejorativo, quero dizer. Existem aqueles que conseguem, na competência de seus temas, tocarem em nossas feridas de um modo particular.

Ao receber um texto em mãos, sempre penso em como proceder na apuração dos temas para a organização de um texto que reflita, ao menos para o leitor, minhas impressões de leitura e seus sentidos. Todo um trabalho de costura de idéias que, por vezes, demora para ser organizado.

Isso não aconteceu quando li Sementes divinas, de Lindalva Galvão devido a sua escrita pungente de humanidade. Explorando temas pertinentes para os dias de hoje, suas situações de vida conseguem colocar em palavras sensações verdadeiramente vividas e sofridas.

O livro inicia com uma autobiografia em que conhecemos os percalços vividos pela autora. São embarques e desembarques em cidades do Vale do Paraíba, retratos do cotidiano difícil da mãe em seus empregos, a entrada para a ordenação religiosa e o início da carreira no magistério. Tudo contado com sentimentos latentes que consegue entremear diálogos e descrições de uma forma testemunhal; o passado é revisitado tendo em vista um novo futuro. É essa a sensação que mais prezo em um texto de qualidade: o que foi vivido no passado pode se atualizar no presente e ser levado para o futuro.

A partir deste ponto, a divisão dos capítulos sugere um aprofundamento maior de alguns temas explorados em sua autobiografia. Três deles se destacam: o racismo, a intuição e a experiência em sala de aula.

O primeiro deles é narrado através de episódios. À maneira de sketches, alguns momentos são contados revelando atitudes discriminatórias e desdenhosas de pessoas que, como define a própria autora, comportam-se como “senhores feudais”. É verdade que o racismo foi adquirido sócio-historicamente no Brasil, mas isso não justifica, em hipótese alguma, atitudes preconceituosas. Um tema polêmico, sem dúvida.

Alguns aspectos psicológicos também são tratados no livro de uma forma leve. A intuição – na caracterização de situações curiosas – dá ênfase nas “coincidências” do cotidiano.

Confesso que a última parte me chamou bastante atenção. Embora se refira à educação de crianças de um modo particular, os pontos de vista podem ser encarados como reflexões para a educação de forma geral.

São situações que só o professor, vivendo a realidade de uma sala de aula, consegue sentir. Os problemas com pais e responsáveis que refletem na educação dos filhos, a relações, por vezes, conflituosa de professores e pais, ou professores e alunos. Um desabafo para questões pontuadas através da aguda observação de gestos de educadores: cenas de um contexto de trabalho e o rigor de uma professora comprometida com a educação.

Vale ressaltar que o modo de tratamento de temas polêmicos pode ser mais importante do que o tema em si, na sua concretude. Pensando na questão do racismo, podemos realizar um diálogo, na aproximação de temas e seus desdobramentos, com produções literárias e (porque não?) cinematográficas que os abordam em um viés histórico. Exemplos não faltam das páginas dos livros ou dos estúdios de cinema.

Quando finalizei a leitura, alguns deles me vieram à mente de forma bastante clara como A cor púrpura, de Alice Walker; 12 anos de escravidão, de Solomon Northup e Django livre, dirigido por Quentin Tarantino pelo retrato da condição escrava e do racismo, logicamente. Todos me fizeram pensar na condição humana de liberdade, de um ser pensante que exerce suas funções sociais, independente de seu credo e sua raça.


Acredito que essa leitura foi uma chave de despertar sentimentos e sensações incômodas. Um incômodo bastante encorajador para entender a vida, ao vê-la pelos olhos do outro.


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